24/01/13

Para Dona Anne, com Bic azul

Co gallo da conmemoración o vindeiro domingo día 27 de xaneiro do Día Internacional de Recordo das Vítimas do Holocausto reproducimos aquí o texto de presentación do escritor e socio de AGAI, Joao Guisan Seixas na exposición "Auschwitz-Birkenau, unha ollada ao pasado" do fotógrafo galego Daniel Candal, no Forum Metropolitano da Coruña o pasado 3 de decembro de 2012.

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PARA DONA ANNE, COM BIC AZUL
OU ACERCA DO SIGNIFICADO ACTUAL DO HOLOCAUSTO


Pediram-me para vos explicar hoje aqui o que significa a Shoah nos nossos dias, e penso que deveria começar por explicar primeiro o que significa a Shoah tão simplesmente. Estou seguro que se saíssemos agora mesmo à rua e fizéssemos um inquérito entre as pessoas, a perguntar o que significa a palavra "Shoah", mais de 90% delas não saberiam. Já se perguntássemos o que significa a palavra "Holocausto" suspeito que a percentagem de pessoas que poderiam dizer alguma coisa, aumentaria consideravelmente.

Só com vos dizer que a Shoah é o Holocausto, parece que podíamos concluir já este acto. Mas caberia perguntar-se também por que escolher uma palavra ou outra.

Na verdade eu detesto este género de questões. Odeio essa mania de correcção vocabular que caracteriza a nossa cultura nestas passadas décadas. Não exagero se digo que, dos últimos 30 anos, passámos 15 deles, pelo menos, a pensar sobre o que não se deve dizer, em vez de sobre o que se pode dizer. Preocupamo-nos mais por chamar de forma nova coisas velhas, do que por procurar coisas novas que dizer.

Se hoje consideramos estúpidos aqueles que tinham medo da chegada do ano mil, de aqui a mil anos vão dizer coisas piores de nós por termos gasto a passagem irrepetível de milénio a discursar acerca de que não devia celebrar-se no ano 2.000, como levávamos 1.000 anos a pensar, mas no 2.001 como lhe ocorreu a Arthur C. Clarke mesmo no último momento (quer dizer nos últimos quinze ou vinte anos). E este é só um exemplo.

Eu celebrei a passagem de século e milénio no ano 2.000, e, na mesma prefiro utilizar sem dúvida a palavra Holocausto e não "Shoah". Uma palavra não é uma coisa qualquer que se possa mudar como uma camisa. As palavras custa pouco dizê-las, mas custa muito enchê-las de sentido. As palavras vão mudando de cor ao longo do tempo, vão adquirindo tons, matizes, cresce-lhes o nariz, acabam por apresentar um dado carácter complexo, mas definido, e que todos os utentes de uma dada língua conseguimos identificar logo. O horror que nos provoca, esse gesto contraído, esse trejeito de boca torcida, de olhos abertos, essa atmosfera cinzenta, esse céu de chumbo, a palavra Holocausto, não pode nem de longe evocá-lo a palavra "Shoah", que mesmo aos nossos ouvidos latinos soa melodiosa e eufónica. Não podemos estragar todo o trabalho cultural que levou carregar essa palavra de sentido, por um simples capricho.

Há um pouco de "preciosismo linguístico" na rejeição de "Holocausto" e na substituição por "Shoah". "Holocausto" denominava, num princípio, o sacrifício ritual em muitas religiões. Não se deve confundir, porém, a semântica com a etimologia, o significado com a origem. Ninguém pensa que uma clavícula seja uma chave pequena. Em nenhuma mente, hoje em dia, a palavra "Holocausto" suscita a ideia de que os judeus tivessem sido sacrificados no Holocausto a nenhum deus, como não seja o deus da loucura. Da diatribe entre Holocausto e Shoah, digo o mesmo que nos casos anteriores: tantos anos a pôr-nos de acordo no que uma palavra quer dizer para depois procurar uma nova maneira que só consiga que já não saibamos do que estamos a falar!

O uso de "Shoah" tem ainda um outro inconveniente. É que se dizemos "Shoah" parece que é coisa de judeus. Uma coisa exótica que não é connosco. E não. O Holocausto é um assunto que toca, que deveria tocar, toda a humanidade.

Bom, teríamos que matizar: o Holocausto foi, com efeito, em si, como facto, como fenómeno, uma "coisa de judeus", mas nem por isso deixa de ser algo que deva tocar toda a humanidade.

Tem a ver com isto a única razão, talvez, válida para utilizar "Shoah" em vez de "Holocausto": a de tentar, assim, evitar a "desjudeização do Holocausto", que é uma forma de negacionismo (quer dizer de anti-semitismo) que hoje circula sem pudor mesmo nas mentes "mais sensíveis", nas bocas e nas penas "mais progressistas".

Negacionismos existem muitos. O primeiro o negacionismo total: o Holocausto nunca existiu. É um invento do lobby judeu que dirige ocultamente o mundo. Mas isso hoje em dia não o defende ninguém, excepto Ahmadinejad, outros líderes ideológicos do mundo islâmico e alguns neonazis consentidos pelo Estado espanhol. Bom, seria mais curto dizer: "não o defende ninguém medianamente inteligente ".

Outras formas mais subtis de negacionismo são a relativização ou trivialização do Holocausto. Dizer: não foi para tanto... as cifras estão exageradas... Estaline também matou muitas pessoas... são coisas que acontecem em todas as guerras... etc.

Todas estas não costumam ser muito bem vistas entre as nossas mentes "bem pensantes". Só a da desjudeização do Holocausto é propalada sem escândalo, e mesmo com esse ar de "superioridade moral" odioso que caracteriza as pessoas que a defendem.

Consiste, em resumo, na seguinte tese: "O Holocausto não afectou apenas judeus, houve outros muitos grupos atingidos: ciganos, homossexuais, testemunhas de Jeová, dissidentes políticos... Os judeus arrogam-se um protagonismo imerecido".

Não sei se lembram a cantora espanhola Cecilia. Uma canção dela tinha uma parte que mereceria um Nobel de literatura, pelo menos, porque acertou a definir com poucas palavras um comportamento característico e profundo da alma humana. Intitulava-se "Dama, dama", e dizia: "Y si no fuera por miedo/ sería/ el niño en el bautizo/ y el muerto en el entierro…".

Uma das coisas que mais explicam o comportamento humano é a não aceitação do irrelevância da nossa existência, do nosso carácter contingente, de sermos apenas um grão imperceptível na história. A dama da canção, se não fosse o medo, deixava-se matar com tal de ser o centro dos olhares.

Uma coisa parecida acontece com o anti-semitismo. O anti-semitismo não passa de uma forma de racismo, e contudo eu acho bom o costume de falar em "racismo e anti-semitismo", porque o anti-semitismo é um racismo um bocado especial, e se o tratarmos como mais um racismo acabamos por não o conseguir ver quando o temos diante dos nossos olhos, que é o que acontece com frequência nos nossos dias. Todos os racismos se baseiam numa ideia de superioridade, mas o anti-semitismo tem a sua origem num complexo de inferioridade. Os judeus devem ser exterminados porque dirigem o mundo. O complexo de inferioridade e a inveja são os únicos elementos que explicam o anti-semitismo.

Por isso chega-se a invejar mesmo o seu papel de vítimas. Os judeus só podem ser tolerados enquanto minoria. Não se lhes pode conceder o direito a ser maioria, nem sequer nos campos de extermínio. Há páginas e páginas cheias de disquisições acerca do número de vítimas, com manipulações grosseiras e estatísticas fraudulentas. Duplica-se, por exemplo, a contagem de judeus polacos mortos, para, somado ao de polacos não judeus mortos, dizer que morreram mais polacos do que judeus. E há quem também compara o número de judeus mortos no Holocausto, com o de cidadãos soviéticos mortos na Segunda Guerra Mundial, que é também assustador.

As vítimas de uma guerra, por muito numerosas e injustas que sejam, não podem comparar-se com as dos campos de extermínio. Mas não há dúvida, também, de que nos campos de extermínio morreram muitas pessoas que não eram judias. Só com os 5.000 testemunhas de Jeová ou os 15.000 homossexuais assassinados já seria suficiente para o lembrar como um assassínio monstruoso. Só com os 250.000 ciganos mortos já teria sido o maior massacre da história. Mas o caso dos judeus não é comparável, nem quantitativamente (que interessa pouco) nem qualitativamente (que interessa mais).

Basta com olharmos o mapa de localização dos campos de extermínio para ver que se distribuem pelas zonas de maior população judia da Europa sob controlo nazi, não pelas zonas de maior população cigana, nem homossexual nem com maior abundância de maçons. A máquina de matar põe-se em marcha com o objectivo de exterminar os judeus, só que, uma vez que ela existe, aproveita-se para eliminar outros grupos que incomodam.

Mas a diferença fundamental é que, enquanto um cidadão soviético podia render-se diante dos nazis e então salvar a vida ou mesmo chegar a fazer parte do establishment (houve de facto um batalhão cossaco das SS), e um comunista alemão podia simplesmente virar o casaco para não ser incomodado, os judeus nem que quisessem se podiam render.

Não se tratava de uma perseguição nem sequer religiosa, nem ideológica. Muitos dos "judeus" que morreram nunca tinham pisado uma sinagoga, e muitos estavam baptizados. Chegava com ter um avó judeu para ser considerado como tal, e ser portanto réu de morte. Porque a diferença fundamental era que os judeus eram exterminados, não pelo que faziam, nem sequer pelo que pensavam, mas apenas pelo que eram. Por isso o Holocausto é maior expressão de ódio da história da humanidade. E precisamente por isso deve ser a mais odiada por qualquer ser que queira ser considerado humano.

Foi uma maquinaria orientada para a morte, com uma preocupação industrial de produzir mais morte por minuto, com o intuito de fazer desaparecer um povo inteiro da face da Terra. E não só fisicamente. Havia também o projecto de apagar qualquer memória dele. É algo que nunca antes tinha existido, que não pode ser comparado com nada anterior ou posterior, por mais que antes e depois tenha havido massacres e perseguições completamente desumanas. Para calmar as reticências anti-semitas que sem dúvida estas afirmações terão provocado nas vossas mentes, direi que, dado que muitos desses massacres e perseguições anteriores e posteriores também foram sofridos pelos judeus, nem sequer qualquer massacre ou perseguição experimentados antes ou depois pelos judeus podem ser comparados com o Holocausto. E o facto mesmo de querer comparar qualquer outra situação dos nossos dias com o Holocausto é já em si uma forma de relativização do Holocausto, de desjudeização do Holocausto, de negacionismo. Uma forma de anti-semitismo.

Nomeadamente na Europa. Há um filme, de cujo nome nunca consigo lembrar-me, em que dois judeus que conseguem sobreviver ao Holocausto, na sequência da libertação dos campos, falam acerca do que fazer no futuro. Um pensa então em voltar para a terra originária dele, na Alemanha ou na Polónia. Coloca-se então a questão de se será possível o convívio com pessoas que, em muitas ocasiões, os denunciaram ou pelo menos apoiaram moralmente a limpeza étnica. Então o outro pergunta-lhe: "E tu pensas que eles nos vão perdoar alguma vez...?" O primeiro não percebe: "Se nós fomos as vítimas...". Mas o outro conclui: "Não o que nós lhes fizemos. Tu pensas que eles nos vão perdoar alguma o que nos fizeram?".

Com as pessoas que somos mais intransigentes não é com aquelas que nos ofenderam, mas com aquelas que nós temos ofendido. Há toda uma corrente de pensamento em Ocidente, de um anti-semitismo subterrâneo, ou evidente mas não reconhecido, que tende para demonizar os judeus, num raciocínio que se bem não justifica expressamente o Holocausto, acaba por insinuar que, bom, os judeus são os amos ocultos do mundo, e que se sempre foram odiados por algo será. (Esta ideia era exposta sem vergonha pelo progressistíssimo Juan Benet há tempos, e há menos pouco pelo adocicado e "boníssimo" Antonio Gala num artigo). Como não podemos aceitar a injustiça dos nossos actos, projectamos o nosso comportamento injusto nas próprias vítimas, a fim de enxugar o nosso sentimento de culpa.

Se o tratamento que lhes dão os israelitas aos palestinianos fosse comparável ao que lhes deram os nazis aos judeus, tinham que ter morrido 6 milhões de palestinianos que não morreram, ou tinham que ressuscitar 6 milhões de judeus que sim morreram. Em 3 anos os nazis exterminaram 78% da população judia da Europa. Nos mais de 60 de conflito a população palestiniana é das que experimentam uma taxa de crescimento maiores do mundo e uma das taxas de mortalidade mais baixas.

Pronunciamos as cifras de forma muito alegre, e as cifras desumanizam. É muito fácil falar de 6 milhões de mortos. Diz-se rápido, e para entendê-la realmente é preciso pronunciá-la de vagar.

Conheço um caso de Santiago Bernabeu que o ilustra bem. Santiago Bernabéu, antes de ser um campo de futebol, foi um presidente praticamente vitalício do Real Madrid. Quando levava à frente da instituição "só" 25 anos visitou a Corunha por causa de um Troféu Teresa Herrera, e numa entrevista radiofónica um jornalista corunhês bisonho colocou-lhe uma pergunta engenhosa: "¿Qué tal, Don Santiago? ¿Qué, 25 años ya al frente del Real Madrid, no?". E então Don Santiago começou a dizer "Hombre, si lo dice usted así parece poco, pero si lo dice así: uno, dos, tres, cuatro, cinco, seis..." E Don Santiago contou, em antena, até 25, o que num programa de rádio é um tempo infinito.

Na mesma, quando dissemos "6 milhões de vítimas" não fazemos uma ideia da brutalidade de que estamos a falar. Se dissessemos, porém: "uma vítima, duas vítimas, três vítimas....", demoraríamos (num simples cálculo matemático) no mínimo duas semanas para conseguir contar até 6 milhões. E se dissermos "uma vida humana inocente, uma mente humana complexa e completa, com os seus pensamentos, emoções, ideias e memórias, duas vidas humanas inocentes, duas mentes humanas complexas e completas, com os seus pensamentos, emoções, ideias e memórias, três vidas humanas, três mentes humanas complexas e completas, com os seus pensamentos, emoções, ideias e memórias....", talvez não deveríamos acabar de contar nunca.

E, com efeito, alguns temos feito o firme propósito de não acabar nunca de contar isto.

Quando visitou, no meio de umas férias o campo de extermínio de Auschwitz-Birkenau, o fotógrafo corunhês Daniel Candal ouviu o eco dessa cifra, o murmúrio surdo dessa contagem incessante. Parece lógico felicitar um fotógrafo pelo seu bom olho. Eu hoje quero felicitá-lo aqui pelo seu bom ouvido.

Agora, com a fotografia digital, já não se utiliza muito esse termo, mas dantes, quando armazenávamos as nossas lembranças em rolos de celulose, costumava falar-se da "sensibilidade" de um filme, como a capacidade de um dado material para reagir diante de um estímulo luminoso. Um bom fotógrafo deve parecer-se com uma emulsão fotossensível: tem que ser capaz de deixar-se "impressionar".

Daniel Candal, na sua visita a Auschwitz foi-o, apesar de que, segundo ele próprio conta, não levava o material apropriado e nunca tinha pensado fazer esta exposição. E então tomou uma decisão que marca o carácter de todas estas imagens. Se reparam, nelas não aparece presença humana alguma. O que não lhe resultou fácil num lugar que é percorrido diariamente por milhares de turistas. Mesmo na foto principal, a da chamada "Porta da Morte", em que não podia evitar o pequeno grupo com um guia, à direita, preocupou-se por o desfocar e camuflar contra as pedras do fundo.

É pena que a fotografia se tenha inventado antes do cinema, porque se se tivesse inventado depois, por uma analogia inevitável, igual que tínhamos falado primeiro de cinema mudo e depois de cinema sonoro, teríamos falado primeiro de "fotografia muda" e estaríamos a esperar pacientemente pela chegada da "fotografia sonora".

O melhor que se pode dizer destas fotografias é que são fotografias mudas. Fotografias em que se ouve o silêncio. Fotografias que conseguem transmitir um silêncio, que é um feito mais mágico que conseguir transmitir o barulho. Há sempre uma perspectiva, as vias, as linhas das camas ,umas acima das outras, nos barracões, uma profundidade vazia. Não há humanidade, só a determinação muda da madeira e do ferro. Porque uma das características do extermínio nazi é que não lhes chegava com matar os judeus. Há uma preocupação consciente e estruturada para os despojar antes de todo o vestígio de dignidade (procuram-se propositadamente as piores condições de vida possível, tira-se-lhes o nome, convertem-nos num número, empurram-nos à luta pela sobrevivência entre eles, ao roubo, ao colaboracionismo, à delação). Um propósito inequívoco de lhes tirar a condição humana antes de lhes tirar a vida.

Hoje em dia já não está tão bem visto tirar-lhes a vida aos judeus (bom, ainda há assassínios anti-semitas, e as mentes "bem pensantes" não se mobilizam), mas o trabalho, pelo menos teórico, de desumanização do povo judeu ainda continua, e esta é talvez a única característica comum a todos os anti-semitismos.

Se observam bem as fotos desta exposição verão que vão ouvir com nitidez o silêncio de seis milhões de bocas. Porque são fotos em que faltam seis milhões de vidas.

Estamos, porém, a falar sempre em passado, e não estamos a responder ao tema que nos ocupa. O que significa o Holocausto hoje?

Caberia perguntar-se primeiro: o que teríamos feito nós se tivéssemos vivido naquela altura? Todos vamos pensar, sem dúvida, que teríamos reagido, que teríamos feito parte da resistência, que teríamos, no mínimo, discordado e condenado isso. Mas na verdade não. Só uma minoria de nós todos teríamos feito isso. A maioria teria apoiado e mesmo participado activamente. O que caracteriza precisamente um preconceito é que as pessoas que o têm não podem reconhecer que o é. E igual que não somos conscientes dos nossos preconceitos de hoje (mesmo dos nossos preconceitos anti-semitas de hoje), não seríamos conscientes dos nossos preconceitos de então.

Podemos pensar também que, se tivéssemos vivido na época em que a maioria das pessoas acreditava que a Terra era plana, nós não o íamos fazer. Mas íamos. Hoje em dia todo o mundo responderia, se lho perguntarmos, que a Terra é redonda. Se acrescentássemos, porém, "por que?", veríamos que a maior parte das pessoas acredita que a Terra é redonda basicamente porque todo o mundo acredita nisso. Acreditam em que a Terra é redonda, da mesma maneira que teriam acreditado então que era plana. Porque todo o mundo o pensa. Continua a ser um preconceito.

De igual maneira há preconceitos anti-semitas que continuam perfeitamente vivos entre nós e que não queremos reconhecer que são anti-semitas, porque não somos capazes de reconhecer que são preconceitos. E o primeiro preconceito anti-semita, e um dos mais perigosos, é o de que não existem já preconceitos anti-semitas.

Regressei de novo a Amesterdão, neste Verão passado, acompanhado por umas amigas. Voltei a visitar, com elas, a casa de Anne Frank (a casa em que aquela rapariga judia se escondeu com sua família, sendo finalmente captura, morrendo num campo de concentração). Havia muitos anos que não a visitava. O que mais me surpreendeu foi ver as medidas de segurança que havia à porta. Parecia um aeroporto, com detectores de metais, filas e vistoria de sacos e mochilas. Uma patrulha da polícia vigiava discretamente a praça e o canal por que se acede. Isso produziu-me um arrepio maior do que sempre me produz essa visita. Compartilhei-o com uma das minhas amigas: "Como pode existir alguém que pense em atentar contra a casa de Anne Frank?". Ao que a minha amiga, querendo concordar, acrescentou: "Sim, parece mentira que aquela gente continue activa".

Aí eu tive um desses momentos de revolta cósmica, de revelação, de "epifania". Eu quero muito esta amiga, mas ela vive nesse Universo indefinido que podemos chamar de "esquerda galega", com todos os seus tiques e mitologias retro-alimentados, e não pode deixar de partilhar os preconceitos do grupo. E então eu disse-lhe com uma veemência que ela só não merecia, mas o grupo a que ela pertence sim: "Não são 'aquela gente'. São 'esta gente'!"

Acabávamos de nos cruzar com eles pelas ruas de Amesterdão. Mas ela não queria vê-los.

O anti-semitismo não desapareceu do mundo. Em todo o mundo árabe e todos os países islâmicos continua a ser exibido impunemente e em ocidente ninguém se escandaliza. Não tenho tempo para fazer uma enumeração nem sequer resumida de testemunhos. Todos os dias há notícias que o demontram. Baste com um dado: o governo do Hamás protestou às Nações Unidas porque no currículo das escolas que a UNWRA (agência das Nações Unidas exclusiva para os refugiados palestinianos) tem na Faixa de Gaza se pretendia ensinar o Holocausto dentro das aulas de ética. E a ONU retirou, sem sentir vergonha, o Holocausto do currículo das suas escolas na Faixa de Gaza. Suponho que em virtude do chamado relativismo cultural: "Para umas culturas o Holocausto existiu, para outras não. Devemos respeitá-las todas".

Nem sequer na Europa o anti-semitismo tem desaparecido. Na pátria da liberdade, na França, os atentados anti-semitas multiplicaram-se neste último ano. Não só o tristíssimo caso Merah, em que pequenos de uma escola judia de Toulouse voltaram a ser assassinados tão só pelo delito de ser judeus, como 70 anos atrás. Houve outras agressões a vários escolares judeus, a estabelecimentos judeus. Houve mesmo actos de solidariedade com o autor das mortes. Na não menos liberal Suécia a pequena comunidade judia de Malmö leva anos a sofrer o assédio da importante comunidade muçulmana, diante da inacção ou mesmo a compreensão das autoridades municipais...

Porque uma das características que une todos os actos anti-semitas da Europa dos nossos dias é a sua vinculação ao mundo islâmico e ao activismo pró-palestiniano. E como isto não nos convém vê-lo, não o queremos ver. As ameaças à casa de Anne Frank não são independentes do incremento da população muçulmana de Amesterdão.

Quem pode querer atentar contra uma casa que nos recorda que, no meio da perseguição e da miséria, uma rapariga judia de 14 anos escreveu algumas das páginas mais emocionantes da história da literatura universal, um livro que nos lembra que a literatura não é um luxo, mas às vezes o mais imprescindível para a sobrevivência? A quem pode ofender que aquela rapariga oculta tivesse conseguido, com a só ajuda de um caderno de papel e uma pena o milagre que nem nazis nem islamistas (e pessoas em geral que passam a vida a reclamar de velhas injustiças e humilhações, inventadas ou não), com mais meios, nunca conseguiram nem conseguirão: converter a sua desgraça, a sua dor, a injustiça recebida, numa obra de arte para a história. Num objecto capaz de dar mais vida à vida dos outros (Aqui o orador mostrou, a agitar no ar, o mesmo exemplar de "El Diario de Ana Frank" em que ele o leu pela primeira vez).

Não são altos, loiros, nem de olhos azuis. Não se consideram uma raça superior. Não são "aquela gente". São "esta gente". Normalmente mais baixos e de pele mais escura, mas há de diferentes os tons e tamanhos. Não se consideram uma raça superior, antes a contrário, consideram-se degradados e humilhados pela mera existência do pequeno Estado de Israel, a única causa de todas as suas desgraças, e não a sua monumental incapacidade para superar todos os seus preconceitos milenários. Eles não se consideram a raça superior, mas a única religião verdadeira, e querem-nos tanto que pretendem salvar-nos das garras da nossa perniciosa liberdade, ainda a custo das nossas próprias vidas ou das deles (Desconfiem sempre das ideologias e grupos que glorificam o martírio. São ideologias de morte).

Claro que se dizes isto, que é uma evidência, vão-te chamar xenófobo e islamófobo (o primeiro nego-o, mas o segundo: é que tenho por acaso a obrigação de gostar do Islão? Se nem sequer gosto muito do judaísmo, como religião! E isso ainda que seja a única religião que não glorifica o martírio). Por mim que venham à Europa pessoas de todos os lugares, de todas as cores e tamanhos, com todas as roupas e línguas, mas nem uma só com ideias de ódio e de morte. Ninguém a quem lhe possa ocorrer atentar contra a casa de Anne Frank.

O anti-semitismo actual, igual que o nazi, pretende apagar também a memória do povo judeu para sempre. Ao negacionismo do Holocausto segue-se um negacionismo ainda mais radical: o negacionismo do povo judeu.

Eu não venho aqui a falar do conflito árabe-israelita. Só pretendo que não tomem partido nele em virtude de velhos preconceitos. Só vos insto a que se informem, que procurem documentação das duas partes, antes de formularem as vossas opiniões. Decidam em função dos factos históricos se os judeus têm direito ou não a constituir um Estado no território de Israel, que é a questão fundamental em todo este assunto, e depois defendam isso com argumentos e dados objectivos.

Não é disso de que venho falar hoje aqui, mas sim a denunciar todo o anti-semitismo que aparece vinculado com frequência ao mundo islâmico e às posições auto-denominadas de "pró-palestinianas" (eu, que quero a paz para os dois povos e que considero que a paz seria o melhor para os palestinianos, não deveria deixar de ser considerado "pró-palestiniano", mas como já disse no início, detesto as pelejas por palavras). E nesse mundo resulta escandaloso o auge desse último tipo de negacionismo.

Há pouco apareceu na imprensa galega uma notícia que deveria ser considerada anedótica, "frikie" ou ridícula, se não fosse o eco tosco de um pensamento mais amplo e expresso normalmente de um mudo mais subtil. O cura pároco de Gestoso, perto de Ferrol, pedia publicamente às autoridades eclesiásticas, a raiz da operação "Pilar de Defesa", a eliminação da palavra "Israel" do texto canónico da Bíblia.

Este revisionismo histórico, este negacionismo da própria existência do povo judeu, encontra-se cada vez mais por toda a parte. Naqueles mesmos dias recebi pela Internet (e ainda encima enviado por uma outra pessoa que também quero muito) um vídeo do conhecido propagandista pró-palestiniano Michel Collon intitulado pretensiosamente "Las 10 grandes mentiras mediáticas" quando na resposta a cada uma delas havia mais de cem (baste dizer que acusava à constituição de Israel de ser racista, quando Israel dificilmente pode ter uma constituição racista, já que não tem constituição). Pois bem todo a sua argumentação se baseava num princípio: o povo judeu não existia, e portanto não havia povo nenhum que pudesse ter direito a constituir Estado nenhum em Israel.

Eu não estou aqui para falar do conflito de Oriente Médio. Noutro momento o faria com gosto. Mas tenho, sim, que vos dizer, de forma categórica, que o povo judeu existe, e que negar a existência do povo judeu é necessariamente, mesmo etimologicamente, um acto de anti-semitismo. Tomem a posição que julgarem mais justa a respeito do conflito, mas nunca a tomem em base a que o povo judeu nunca existiu, ou que o povo judeu nunca teve qualquer vinculação com a terra de Israel. Isso, além de uma amostra de anti-semitismo, é também uma amostra de algo um pouco menos grave: de demência.

Esse revisionismo histórico, esse negacionismo moderno, esse Holocausto teórico, não é menos cruel que o Holocausto clássico. Chegou mesmo na sua crueldade a tentar também, pelo menos intelectualmente, contra a casa de Anne Frank. Negou-se até que nunca tivesse existido. E quando se publicou a ficha de internamento no campo de concentração em que ia morrer, passaram de pretender tirar-lhe a vida, a pretender tirar-nos a sua memória. Matar inclusive a única parte dela que tinha ficado viva: o seu diário (Aqui o orador voltou a agitar no ar o Diário de Anne Frank). É curioso porque uma característica do anti-semitismo, comum a qualquer outro preconceito, é que supõe nalguma medida uma claudicação da inteligência. Qualquer argumento que apoie o preconceito é válido e qualquer argumento que o contrarie não.

O primeiro que se disse foi que não resultava credível que esse texto tivesse sido escrito por uma rapariga de 14 anos. E nisso quase que concordo. Com efeito: parece incrível que esse texto pudesse ter sido escrito por uma pessoa tão nova. Há, porém, um matiz: e contudo, de facto foi-o.

O texto revela uma madureza, uma mestria, uma graça, uma capacidade de auto-distanciamento da obra que só grandes autores como Cervantes ou como Eça puderam conseguir, incompatíveis com essa tenra idade. Sim, mas também, resultaria igualmente incrível que um homem adulto (os teóricos da conspiração apontam para o pai dela) pudesse reflectir com essa vivacidade luminosa a alma, os pensamentos, as emoções, a maneira de perceber a realidade, os outros e o próprio corpo, de uma rapariga adolescente. Teria que ter sido o maior escritor da história e teria que nos ter deixado alguma outra obra de igual préstimo.

Só há uma conclusão lógica: o livro foi escrito por uma rapariga adolescente, com efeito, mas uma rapariga adolescente com uma madureza e uma capacidade literária fora do comum.

Foi então que surgiu a ideia genial da caneta. O diário de Anne Frank não podia ter sido escrito por ela, porque o diário tinha sido escrito com uma caneta e na época em que ela vivia as canetas não existiam. Que bom escritor, mas que parvo, era senhor Otto Frank! Claro que não se sabe de onde tiraram eles que os diários tinham sido escritos a caneta. Talvez de que, na época em que se faziam estas acusações, era o instrumento de escrita que se esperava encontrar nas mãos de uma adolescente. Mas os preconceitos, como dizíamos atrás, não precisam de mais demonstração para serem aceites.

Pois bem. Os diários foram submetidos a rigorosas provas forenses que certificaram que, com efeito, foram escritos na época em que Anna Frank vivia e com os meios de escrita de que Anne Frank podia dispor.

E aqui começa outra revelação, uma outra "epifania", porque a raiz de tudo isso, então eu perguntei-me: quando, quem, como e onde se inventou afinal a caneta? O humorista Perich dizia, com muita graça, que era curioso que ninguém se lembrasse na história quem tinha inventado o supositório. Bom, isso pode entender-se, mas por que ninguém se lembra de quem inventou a caneta Bic? (O orador neste momento agitou no ar uma simples e costumeira caneta Bic, azul por sinal).

Há pouco soubemos da detenção de um antigo responsável dos campos de concentração na Hungria, Lazlo Csatary, e nestes dias chegou-nos a notícia de um grupo neonazi húngaro tinha proposto no parlamento desse país que os cidadãos judeus fossem novamente classificados e identificados. O resultado da minha pequena pesquisa foi que a escrita esferográfica, a caneta, fora inventada por um outro húngaro e mesmo um outro Lazlo. Um outro húngaro desses que os neonazis pretendiam classificar. Porque Lazlo Biro, inventor da caneta, não foi senão um judeu húngaro que conseguiu escapar por muito pouco ao holocausto e refugiar-se na Argentina, onde ainda se celebra o "Dia do Inventor" na sua honra. E ali desenvolveu o seu invento, cuja patente acabaria por vender ao industrial francês Marcel Bich.

Pode-se pensar que é muito pouca coisa. Uma caneta azul. Mas é um invento útil que nos facilitou imensamente a vida. Aqueles que ainda conhecemos as sensaborias de escrever com pena e tinteiro, sabemos que lhe devemos às canetas Bic muitas horas de vida que pudemos empregar em coisas de mais proveito que ter que repetir um texto inteiro porque nos tinha caído um borrão na última da hora. Se multiplicarmos as quantidades de horas de vida que as canetas Bic proporcionaram a todos os seus milhões de utentes, teríamos que lhe devemos ao esquecido Lazlo Biro, milhares de milhões de anos de vida.

Seríamos conscientes também de que, se as coisas tivessem mudado um pouco, se o Lazlo Csatary tivesse conseguido apanhar o Lazlo Biro, todos esses milhares de milhões de anos de vida hoje já não teriam existido.

Podemos fazer uma outra operação bastante parecida. Concedendo que a todas os judeus mortos no Holocausto coubesse esperar, em média, quarenta anos de vida (havia anciãos, sim, mas também crianças de colo), se os multiplicarmos por 6 milhões teríamos que se perderam em fumo e cinza mais de 240 milhões de anos de vida.

A humanidade deve-lhe aos judeus muito mais do que os judeus lhe devem à humanidade. Devemos-lhes milhões anos de vida e temos-lhe pago com milhões de anos de morte. Devemos-lhe, como pouco, dois mil anos de paz. Ou, quando menos, o benefício da dúvida.

Não invoco a generosidade, nem muito menos a caridade. Odeio o bondosismo. Sejamos egoístas. Mas inteligentemente egoístas. E então descobriremos que o mais inteligente é ajudarmo-nos a viver uns aos outros.

Nesses milhares de milhões de anos de vida esbanjados, haveria muitos Lazlo Byro, e muitas Anne Frank. Muitas ideias úteis e bonitas que teriam dado mais luz às nossas vidas, mais vida às nossas vidas. E caberia perguntar-se então: quantas, já não canetas Bic, mas raquetas Ralf ou pantoflagistros Rabimochiv, por não falar na obra completa de X ou a última sinfonia de Y, quantos biliões de biliões de horas de vida não perdemos nós próprios no campo de extermínio?

Eu morri ali. Todos morremos em Auschwitz. Há umas horas de vida deliciosa que eu já nunca poderei viver por causa do Holocausto. Anne Frank podia estar viva agora mesmo. Deveria estar viva agora mesmo. Teria "apenas" 83 anos. Podia até escrever mais alguma obra ainda. Não resulta difícil esperar que, se Anne Frank conseguiu escrever esse livro maduro e brilhante que é o seu Diário, se estivesse agora mesmo viva teria sido sem dúvida um dos maiores escritores de toda a história, e eu teria passado tardes deliciosas a ler as obras dela, sentado na minha casa, ao pé da ria.

Mas Anne Frank morreu em 1945, aos 15 anos de idade, no campo de concentração de Bergen-Belsen, poucos dias antes de que fosse libertado. E com ela muitas das melhores tardes da minha vida. Em 1945, no mesmo ano, as primeiras canetas Bic saíam ao mercado. Anne Frank, como com a liberdade, quase que pôde roçar uma com os dedos...

Como suponho que, quem mais quem menos, todos têm alguma caneta Bic em casa, queria convidar-vos a que comprem e que leiam o Diário de Anne Frank. A história que o envolve é triste, mas as histórias que contém não. É um livro cheio de chispa, de ironia, por vezes maliciosa, de observações perspicazes, de ternura e (e talvez isso seja o mais triste) de esperança. Leiam-no e que depois voltem mais uma vez a percorrer os painéis desta exposição, a pensar quantas obras maravilhosas ela não poderia ter escrito se tivesse vivido mais 68 anos e tivesse contado apenas com a ajuda de simples canetas Bic azuis como esta (Neste momento o orador agita no ar com uma mão um exemplar do Diário de Anne Frank, e com a outra uma caneta Bic azul, e cala).