Por Joao Guisán Seixas
O concerto do israelita Idan Raichel's Project no Auditório da Galiza, em Santiago, sábado (13/02/2012) à noite, foi uma dessas experiências de que a gente acorda, no dia seguinte, com o que eu denomino “uma ressaca sem álcool”. A sensaçom de ter vivido uma experiência que não é possível viver-se neste mundo e que deve ter-se tratado de um engano dos sentidos.
Dos sentidos foi, mas uma revelação, não um engano. Uma noite mágica, cheia de revelações e encantamentos. Uma viagem vibrante por sonoridades aparentemente exóticas, mas que retiniam com ecos familiares no fundo dessa alma nómada que todos os seres humanos devemos ter, mesmo se afinal não temos alma.
Uma noite que não podia acabar melhor, mas que também não podia ter começado pior.
Fora, mas muito longe daquela noite luminosa do interior, havia uns donos da verdade com apitos estridentes a berrarem que aqueles músicos eram genocidas. Não passavam de uma dúzia de pessoas, mas cobriam as arcadas de entrada do auditório com enormes faixas e amplificavam os seus berros com alto-falantes, a exercerem uma violência moral sobre as pessoas que queriam aceder à sala, diante a presença muda da polícia, que parecia não estar disposta a actuar até que a violência moral não se convertesse em física. Vi alguns rostos aflitos, entre o público que acudia. Rostos de dúvida se entrar ou não entrar. Rostos de medo, polo menos ao que dirão. Os donos da verdade faziam engenhosas rimas entre “sionistas” e “terroristas”. Nós, como já tínhamos pago os 12 € do bilhete, entrámos na mesma, julgando que íamos ser degolados ou gaseados. Mas saímos dali mais vivos do que entrámos.
Um dos momentos mais mágicos do concerto foi quando a cantora palestiniana Najla Shami interpretou com eles duas canções, uma em castelhano e outra em árabe (é curioso, mas disse-me mais coisas esta última, especialmente electrizante). Como se vê, um comportamento comparável ao do Apartheid da África do Sul, num espectáculo muito parecido com as grandes demonstrações de massas da Alemanha nazi (como há pessoal que interpreta tudo à risca, direi que isto é ironia, ou antes radiografia do pensamento daqueles que, à porta do edifício, tentaram boicotear o acto).
A humana e musicalmente extraordinária colaboração de Najla Shami, não foi, noutro sentido, tão extraordinária. Foi uma particularidade desta actuação, por ela residir em Santiago, mas não constitui um facto isolado na carreira de Idan Raichel, que actua com outros músicos palestinianos e de muitas diferentes procedências. E não se trata de uma concessão demagógica “para inglês ver” (como se diz no Brasil), porque a sua música é também feita assim. Uma música tão diversa como os músicos que a interpretam. Inspira-se por igual na música etíope, na iemenita, na da liturgia judia... Uma música que se inspira em tantas músicas é uma música que se inspira na música! Tem ares por vezes pop, por vezes de reggae, por vezes jazzísticos, mas de repente um músico tira da sombra um clarinete e levanta-se no ar puxado pela loucura alegre (ou a alegria louca) de um redemoinho de música klezmer cheia de ares centro-europeus ou balcânicos. Nos espectáculos do Idan Raichel’s Project fala-se em inglês, mas canta-se em hebreu, em árabe, em espanhol, em francês, e em línguas que eu desconheço, ou que talvez sejam indecifráveis, se calhar por estarem perdidas, se calhar por não se terem inventado ainda.
Costuma-se enquadrar a música de Idan Raichel dentro da etiqueta de “Músicas do Mundo”, hoje em dia tão na moda, e que quer dizer afinal: “Música de Diferentes Partes do Mundo”, mas no caso de Idan Raichel, a música dele é na verdade “Música do Mundo”, em sentido estrito.
Quando entrámos estavam a criar ambiente com a habitual máquina de fumo. Mas eu acho que era melhor terem espargido no ar areia de desertos, ou quem sabe se de relógios de areia quebrados. Porque é um música que não entende de tempos nem lugares. Oriental e ocidental ao tempo, antiga e moderna ao tempo, uma música com tempo e sem tempo ao tempo. Num momento dado do espectáculo ocorreu-me: “Esta música é como Israel!” . Israel é, pelo menos dentro das suas fronteiras (concedam-me, em aras de um pouco de objectividade, isso no mínimo) um milagre de integração e de convívio. Judeus de origem russa, centro-europeia, norte-africana, falashas da Etiópia, temani do Iémen, árabes muçulmanos, árabes cristãos, beduínos, drusos, bahá’i, imigrantes de muito diferentes origens, línguas e religiões, conseguem conviver. Com problemas, claro é, porque são humanos. Mas conseguir conviver com problemas é a única alternativa real a não conseguir conviver em absoluto, e isso já é milagre suficiente. Alguns árabes que vivem em Israel têm um conflito ideológico com o Estado de Israel, é certo, mas o conjunto dos árabes israelitas não tem conflito social nenhum com os seus concidadãos judeus, e pode-se demonstrar com dados que vivem em melhores condições e fruem de mais direitos do que os árabes de qualquer país vizinho ou próximo.
E ocorreram-me também outras duas ideias intimamente conexas com esta. A primeira: Se o resultado da chamada “Primavera Árabe” fosse (como todos queremos) a criação de Estados modernos, democráticos e avançados em todos esses países, e não (como muitos tememos) a criação de teocracias retrógradas e nada respeitosas com os direitos humanos, necessariamente todos esses Estados vão acabar parecendo-se com Israel. E a segunda: Por muito paradoxal que possa parecer, Israel é a melhor ponte que ocidente pode ter no mundo árabe, porque só ele aprendeu a viver na fronteira entre esses dois mundos. Israel deveria ser, antes que um inimigo dos países árabes, um exemplo a seguir. Porque ele soube conservar da tradição o que dela merece ser salvo: a música, a língua, a arquitectura, as lendas, a arte... Mas soube também desterrar o que dela deve ser desterrado: o controlo das consciências, dos usos e costumes, a discriminação da mulher, o ódio ao diferente e o fanatismo.
Israel é antigo e moderno, ocidental e oriental a um tempo. Como a música de Idan Raichel. E Idan Raichel também é como Israel. Por isso, antes do começo do espectáculo, ele saiu sozinho, num típico gesto intransigente de fascista, a tentar dialogar com aqueles energúmenos, que o retribuíram com desqualificações e com insultos. Mais uma vez: genocida e terrorista. O mais cómico, ou o mais dramático, é que dentro dessas pessoas reconheci algumas que sei que sempre apoiaram as acções terroristas do Exército Guerrilheiro do Pobo Galego Ceibe e que hoje em dia apoiam os projectos genocidas dos aiatolás iranianos. É que ninguém já reparou nisto?: Se o Irão atirar uma bomba nuclear contra Israel, essa bomba não saberá diferençar árabes de judeus, nem respeitará a sinuosa linha de fronteira entre Israel e os territórios palestinianos (O aiatolá Ali Khamenei declarava há pouco que a morte de 60% de judeus na zona justificaria a de 40% de muçulmanos). Irão vai defender a causa palestiniana destruindo a Palestina. Igual que esses pretensos amigos dos palestinianos se concentraram naquela noite fria para tentar impedir, afinal, que uma cantora palestiniana cantasse. Que cantasse com um músico israelita e se abraçasse a ele, e que ambos demonstrassem, nesse gesto, que o convívio é possível, e que a vida e a felicidade dos seres humanos concretos que habitam Israel e a Palestina é muito mais sagrada do que qualquer fronteira e qualquer preconceito ideológico, e que isso só é possível desde a colaboração e o entendimento, e não desde a incitação ao ódio que os donos da verdade, e da porta do Auditório da Galiza, praticavam.
Talvez era isso o que eles não queriam que nós víssemos.
Mas saímos dali mais vivos do que entrámos.